Um prazer cultivável aos 80 anos

Tenho assistido a coisas fantásticas na minha vida, umas melhores, outras nem tanto, mas mesmo sendo elas positivas ou negativas, têm tido muita influência na maneira de como vejo e encaro a vida. Hoje vou contar-vos a situação que, até hoje, me tocou mais.
Eram um casal totalmente igual a todos os outros, pelo menos para mim. As pessoas, e quando falo em pessoas refiro-me às mais velhas, na mercearia comentavam que ela era uma pessoa muito astuta, “mandona” mas boa pessoa. Sempre educou muito bem os seus filhos, até porque hoje eles são pessoas notórias, “grandes” pessoas, ou seja, pessoas que estão bem na vida e exercem cargos importantes, tornando-os pessoas influentes no seu ramo de trabalho. Os seus filhos, foram educados nas bases e rituais dos antigos, o respeito total aos pais e a fraternidade para com os irmãos. Em casa, segundo o que consto, quem “mandava” era ela, ela comandava a casa, mas sem tirar, como é obvio, o papel do pai, que vinha a ser desempenhado a complementar as ordens da sua esposa. O casamento, foi uma coisa quase obrigatória, mas ao contrário da maioria dos casamentos da época, este trouxe consigo o verdadeiro objetivo do casamento, o amor, esse existiu sempre e foi talvez o que tornou aquele casamento o mais bonito de todos. Eles amavam-se e eu mesmo sem conhecer a 100% o casal retiro esta conclusão, porque a situação que eu vos vou contar dá, obrigatoriamente, a tirar esta conclusão.
Eu fui à mercearia perto da minha casa, haviam de ser duas da tarde, e essa senhora entrou lá ao mesmo tempo que eu. Nesse dia, ela estava a contar aos donos da mercearia que não estava melhor (deduzi que andava doente) não se andava a sentir bem e que temia o pior, como é óbvio, disseram-lhe para não exagerar, que não era nada de mais poderiam até ser coisas da idade, talvez.
 Na altura não dei muita importância à conversa, não só por não ter confiança com a senhora, mas também porque é hábito (e desculpem dizer isto) as pessoas da 3º idade queixarem-se disto e daquilo, e ainda por cima como estávamos na mudança dos nevoeiros para os dias solarengos, isto poderia fazer-se notar nas suas articulações e daí os seus queixumes.
Mas mal eu sabia, que a mudança do tempo, nada teria a ver com as suas queixas. Dias depois vim a descobrir que a senhora faleceu, ela já de nova tinha sido operada ao coração, tinha, atualmente, vários problemas cardíacos, e talvez tenha sido essa a razão da sua morte. Vocês devem estar a perguntar-se porque estarei eu a dizer-vos isto, sim é verdade, morreu mais uma pessoa, tal como neste instante terá morrido outra, mas onde eu quero chegar é à parte da forma como ela partiu. Eu não deveria dar tanta “importância” a este facto até porque à quem morra de forma mais comovente (se é que posso chamar à morte comovente) mas esta senhora, morreu nos braços do marido, já de noite. Eu não vos posso contar aquele rol de procedimentos que antecedem à morte mas se vos pudesse contar vocês também se arrepiariam e ficariam petrificados com os acontecimentos, vou só dizer-vos que ela morreu nos braços do marido e que antes de morrer deu um suspiro e pronunciou o nome dele. Vocês devem estar novamente com cara de indignados, como quem, wow, grande coisa, ou até mesmo, já vi pior. Mas eu digo-vos, ainda à mais. O senhor acabou por perceber que a sua esposa faleceu, fez-se todo aquele procedimento à morte, e no dia do funeral da senhora, o senhor foi à mercearia onde a mulher ia lá regularmente onde até tinha criado laços afetivos, e sentiu a necessidade de conversar com a dona da mercearia, entretanto, entrou um outro sujeito dentro da mercearia e ao ouvir toda aquela conversa perguntou ao idoso se era viúvo, este respondeu-lhe já com as lágrimas a correr-lhe no rosto “Sim, sou viúvo há um dia. Perdi uma grande mulher. A minha mulher era uma grande mulher. Ela podia ser má, podia ter os piores feitios do mundo, mas era uma grande mulher e soube educar os meus filhos, e agora partiu.” Digam-me, agora, o que pensar acerca deste nobre casamento. Nas vossas cabeças podem ocorrer coisas do género: lamechices, tretas, velhices etc. Na minha ocorre simplesmente a existência de um grande amor, um amor que correspondeu a mais de metade da vida de cada um deles, e depois de tudo aquilo que eles passaram (que vocês não têm a oportunidade de saber) eles permanecer juntos até que a vida os separa-se. Desculpem se não vos surpreendi, ao contrário disso, eu chorei esta morte como se a tivesse presenciado bem de perto, não há nem haverá tantos casamentos como este. Este casamento soube cultivar o amor, colher os frutos, sobreviver às pestes permanecendo fortes e juntos mesmo com entraves, mesmo com dificuldades, a promessa que se fez aos céus e a deus foi cumprida. RIP

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