Chapter I - A inspiração

Dia 31.12.2014 | 02:21h

Hoje sou suspeita para desafalar. Depois de ler "Walden" de Thoreau ao som de McMorrow em "Follow You Down to the Red Oak Tree" todos os meus pensamentos estão magicamente manipulados e apesar de falar genuinamente aquilo que me ocorre no pensamento e no coração, falo com um sentimento mais forte e com uma convicção no mundo que nenhum outro autor me transmite como ele.
Saboreio todas as suas palavras como se fossem frescas framboesas, cada página envolve-me nas suas palavras com fortes heras. Sinto que ao folhear o livro estou a observar bem de longe, por entre os altos pinheiros e ao som do murmúrio do rio Walden e dos pardais que o observam empoleirados nas árvores, Thoreau a construir a sua caserna no meio dos bosques. Vou vendo o cuidado com que contempla a natureza, a naturalidade com que cantarola os versos que lhe surgem na memória e a forma como a resina nas mãos não o impede de comer a merenda. A sua simplicidade inveja-me.
Não é qualquer pessoa que observa o mundo como ele observa e se pedir desejos realmente funcionasse pediria que, por meros minutos, pudesse ver o mundo com os seus olhos e garanto-vos que se tal fosse possível a partir daí poderia morrer porque descobri em vida o que afinal é viver em conformidade com a natureza e apreciar a sua beleza.
Os humanos, que em Walden são fortemente colocados em causa em todos os aspetos, são ingratos até consigo mesmos. Nascidos pela mãe natureza, sucumbem ao ócio e às coisas mais supérfluas como se fossem a necessidade mais básica do ser humano, ignorando instintivamente os mais belos e singelos detalhes.
Thoreau foi para mim O Homem de todos os homens, O Deus de todas as coisas e a inspiração de todos os concidadãos. Numa obra intemporal fala do reverso da moeda que ninguém, ou quase ninguém, vê ou contempla.
Ainda estou a degustar este maravilhoso livro e com imensa pena e gratidão vou virando as páginas, consciente que cada palavra é ouro mas que o livro está a chegar ao fim. Sou prisioneira dele desde que a gentil empregada da Livraria Almedina mo entregou e depois de o ler não consigo olhar o mundo da mesma forma, sinto sempre a necessidade de me recolher em mim, refletir em tudo o que li e saborear a minha vida e a minha existência de uma outra forma.


O fogo é o big bang controlado e em pequena escala, é uma fúria da mãe natureza, é o portal para uma outra dimensão, não é quente e sabe ao chá de maçã e canela, consigo ver nele mãos que levemente vão imitando as ondas do mar - uma vez para cima e depois descem.
Imagino como seria andar com as mãos e pegar nas coisas com os pés, sorrio ao pensar no meu dedo grande a segurar na chávena de chá e franzo o sobrolho ao pensar se será tão doloroso bater com o dedo mindinho da mão na esquina da porta, como é bater com o dedo mindinho do pé.


O espírito de Walden vai fazendo a sua cama dentro de mim e sinto que sendo parte dele, acaba por ser a minha bíblia. Profundamente vou invejando Thoreau por resistir a uma sociedade mecanizada e por construir o seu próprio mundo com base nas suas crenças e nas suas vontades. Desprezo-me porque não sou genuína e fiel a mim mesma, guardo em mim um poço de tantas vontades mas não tenho a liberdade de espírito de as pôr em pratica, vou criticando o pedaço de carne que se vai cruzando comigo na rua porque não pensa por si mesmo, mas acabo por ser um cópia escondida na sombra. Vou realizando objetivos que não são os meus, mas faço-o porque os outros outrora o fizeram e é meu dever realizá-los também. Vou vivendo uma vida que julgo ser minha mas que é intimamente manipulada pelos outros. Fico enojada ao ouvir os que dizem que são donos de si mesmos e que nem a complexa sociedade os molda, dizem-se tão livres de espírito e filhos da paz e da harmonia porém não tem astúcia de dar valor ao Outono e de associar a cascata de um rio às lágrimas de uma mãe ao perder o seu filho. Fico triste por pensar que alguém conseguiu e consegue viver em perfeita sintonia com a natureza e eu continuo a viver entre carros fétidos, prédios individualistas, políticas homicidas, estradas congestionadas, leis que privam a liberdade, religiões destruidoras, normas éticas que me rotulam se andar descalça nas ruas, campanhas que sufocam os ouvidos, industrias que matam os mais pobres e ricos que são piores que abutres. Continuo no meio de tudo isto e Walden escorre sossegadamente como se a única coisa que o assustasse fosse o Inverno que o congela.