Zero. O livro chama-se Zero. Cada
vez acredito mais que os livros foram feitos para serem lidos durante viagens,
sejam elas curtas ou longas, sejam elas por diversão ou por mera rotina, sejam
elas sinônimo de felicidade ou tristeza. E é curioso que aqui é muito comum ver
alguém ler durante uma viagem, e mais curioso que isso é que vejo mais livros
do que sorrisos. Mainz não é uma cidade muito sorridente, o quão contraditório
é isso? Ele está profundamente entranhado na sua leitura. Ao seu lado está uma
mulher a falar, extremamente alto, ao telemóvel, algo que ao fim de um tempo me
começou a incomodar, mas a ele não. Ele continua na sua bolha, como se o som
nem existisse e nada faz com que os seus olhos se desviem do livro. Os dois
graus que hoje se fazem sentir obrigam-no a usar um gorro. Acho que ele é a
primeira pessoa que eu vejo, a quem o frio lhe fica bem no rosto, nas mãos, no
pescoço, no seu todo. Ele tem um tique particularmente interessante: os lábios
dele estalam de vez em quando, a sua boca abre o suficiente para se notar a
linha perfeita que os seus dentes brancos formam. Tem uma barba
despropositadamente deixada por fazer, ele sabe que isso o favorece e que
acentua os cantos do seu rosto mas só acho uma pena que esconda muito dos seus
lábios. O comboio está 17 minutos atrasado e toda a gente está silenciosamente
angustiada por isso, mas ele não. A mulher calou-se, danke. Ele permanece
impávido e sereno. Nem o thriller que tem nas mãos ou o burburinho de fundo do
comboio o perturbam. Permanece assim, hipnotizado pelo livro, durante mais duas
paragens. Tento decifrar no seu rosto qualquer tipo de emoção mas não é fácil.
Como os alemães são frios e distantes. O altifalante do comboio distrai-me,
informa os passageiros sobre a aproximação da próxima paragem. As pessoas
começam a dirigir-se para a porta de saída, frenéticas, uma vez que ainda faltam uns
minutos para chegar ao destino e elas já se alinham em frente à porta, prontas
para romper fora do comboio. Também tenho de sair nesta paragem, infelizmente
não consegui decifrá-lo, ele continua inundado pelas letras e frases, continua
preso no enredo do livro, não se move nem reage, eu precisava de mais tempo. As
portas abriram-se e a multidão saiu disparada do comboio. Entre empurrões
inevitáveis, pessoas a correr, o comboio a partir e chamadas barulhentas eu
voltei a olhar para trás, na tentativa de pela última vez extrair alguma coisa
dele, e tudo o que eu vejo é um blur vermelho do comboio a partir e um vulto
preto na porta, esbracejando contra o tempo e com um livro e uma mochila
toscamente agarrados. Ele esqueceu-se de sair do comboio. O livro devia ser
muito bom.
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